não é fácil ser estudante de medicina.
é, eu sei o que você vai me dizer. ‘vida de estudante de direito também é foda.’. ‘foda?! venha fazer cálculo 3 antes de falar que a sua vida é foda.’. e, correndo o risco de parecer uma velha reclamona, eu responderia: ‘VIDA?? QUE
VIDA?!’. porque às vezes eu acho que abdiquei da minha quando escolhi ser
médica.
sim, eu sei que parece dramático, mas é como as coisas são. sendo
bem honesta, fazer medicina já cansa desde antes do momento em que você passa
no vestibular. se você já esteve numa sala de cursinho, deve saber que a grande
maioria dos alunos mais aplicados, mais estudiosos e mais bitolados do lugar
planeja seguir o nobre caminho de hipócrates e galeno. e aí, quando você entra
na faculdade, as coisas pioram. no começo, é tudo maravilhoso. gente nova,
truco no meio da aula, festa a semana toda, só alegria. durante toda a minha
vida, eu acho que nunca fui tão feliz quanto no período entre o dia em que eu
passei no vestibular e a semana anterior à primeira prova que eu fiz na
faculdade. mas o tempo passa e a realidade acaba te alcançando: de repente, sem
ter muita noção de como isso aconteceu, você passa de calouro nonsense a
estudante neurótico. e é aí que a sua vida acaba.
adeus baladas, barzinhos e possibilidades de interação social. sejam bem-vindos, livros de 2 mil páginas, seminários de 2 horas e 12 provas em
uma semana. eu sei que um pouco disso também se aplica à grande maioria dos
cursos superiores que existem nesse Brasil tropical. a grande diferença é que,
para os outros, essa abstinência social e dedicação exclusiva à sua futura
profissão dura dias, ocasionalmente semanas. para o estudante de medicina, é
uma realidade que vai se estender por, pelo menos, 12 períodos.
às vezes - especialmente agora, em tempos de mais médicos e cubanos e blablabla, noto que existe um certo preconceito da sociedade em
relação a nós, futuros médicos. para o resto do mundo, somos um
grupinho de filhinhos de papai metidos a besta que não têm consideração pelo
próximo. e olha, fico meio chateada com isso. é muito fácil olhar para um estudante de
medicina e só enxergar uma carinha esnobe e uma mochila cheia de xerox. difícil
é ver o que se esconde por dentro dos nossos jalecos brancos e dos nossos
corações tão comumente aflitos em semana de prova. ninguém pensa em todas as
horas de estudo, toda a dedicação, toda a preocupação, todas as noites mal
dormidas e todo o esforço que são necessários na formação de um médico. tomando
a mim, uma estudante mediana do quinto ano, como exemplo: durante a maior parte
do ano, minha vida praticamente pode se resumir a 8 horas no faculdade de
segunda a sábado, [tentar] estudar toda a matéria que os professores vomitam em
cima da gente, dormir 4-5 horas por noite e me desesperar pensando na prova de residência.
isso sem falar nos estágios. ok, a gente aprende um monte de
coisa nos nossos estágios e amadurecemos muito profissionalmente com eles, mas
é uma carga extra de trabalho que é muito difícil colocar nas nossas já
atarefadas vidas de estudantes. ponha-se no nosso lugar, tendo que encaixar uma
média de 12 horas extra na sua vida toda semana. você reclama do seu estágio? acha que recebe pouco e trabalha muito? pf. tente ficar 12 horas em pé dentro
de um centro cirúrgico, às vezes sem poder sentar ou sequer tomar um copo de
água, pra receber como recompensa comida de hospital e a grande honra de passar
instrumentos para o médico durante a cirurgia. e o internato?!... você trabalha como médico, enfermeiro, auxiliar, ocasionalmente até de faxineiro, e muitas vezes o conhecimento que teoricamente é a recompensa por esforço é pífio. é, você não sabia? estagiários e internos de medicina
ganham 0 dinheiros pelo trabalho. Z-E-R-O. às vezes, eu acredito de verdade que
a escravidão deva ser mais vantajosa; pelos menos eles tinham feijoada em lugar
de gelatina de hospital na hora do almoço.
não é como se eu estivesse reclamando. veja bem, eu amo a
medicina. gosto de estudar. faço um YEEEEEY gigante na minha cabeça quando tenho que suturar e uma dancinha da felicidade quando me chamam de doutora. adoro os meus pacientes e, honestamente, não
consigo me ver seguindo outra profissão. mas ela cansa. e muito.
a medicina foi a
melhor coisa da minha vida, mas acaba comigo de várias maneiras – física,
mental e socialmente. admito que todo o foco na faculdade e todo o cansaço que ela
me causa acabaram me tornando um tanto quanto alienada. retardada social. na
maior parte das vezes, não tenho tempo para nada na vida além de estudar e
dormir. ler, conhecer gente nova, ir para a academia? só nas férias. nas raras
ocasiões em que tenho um tempinho de sobra, geralmente estou tão exausta que prefiro
ficar em casa de pijama a colocar salto e maquiagem para ir viver a vida normal
de uma jovem de 25 anos por algumas horas. aí, nas pouquíssimas vezes em que
resolvo colocar os pés para fora de casa em direção a algum lugar que não seja
um hospital, meus amigos e eu acabamos falando da faculdade por horas e horas. até tentamos outros assuntos – uma série, uma banda, um livro -, mas, no fim,
sempre voltamos para ela. a medicina é uma amante ciumenta. não deixa espaço
para outras coisas na vida de quem a escolhe.
não é fácil ser estudante de medicina. às vezes, tenho vontade
de desistir do curso e voltar a ter uma vida normal. tem dias em que eu me
pergunto o porquê de eu continuar insistindo em querer seguir essa profissão
que me estressa, me cansa e que provavelmente vai acabar me fazendo ter rugas
muito precoces. mas aí eu atendo um paciente que diz que eu vou ser uma
excelente médica e que vai querer o telefone do meu consultório. assisto uma
cirurgia rara com um médico super legal que me explica tudo o que está
acontecendo e, com sorte, até me deixa suturar. tenho uma aula destruidora com
uma das maiores referências mundiais a respeito de alguma patologia. e, no
final das contas, eu acabo nem lembrando que naquele mesmo dia, às 7 e 15 da
manhã, saindo de um hospital pra emendar mais 12 horas em outro, sem dormir, sem comer
e sem ter sentado nas últimas 8 horas, eu pensei por um segundo que eu poderia
ser mais feliz se abandonasse a medicina.
afinal, citando a doutora meredith grey, eu sou obrigada a admitir: I could quit. but here's the thing: I love the
playing field.